EU CONTINUO EMBRIAGADO
Um destes dias, logo após o almoço, num ônibus urbano vejo a cena patética de um jovem bêbado, possivelmente drogado, e silencioso. Em certo momento ele se levanta e vai em direção a um outro rapaz, mais jovem, como se desejasse lhe falar e não consegue – ou não quer - não pude saber. O outro fica muito constrangido e muda de lugar. O bêbado vai atrás. O mais jovem resmunga e o outro, cambaleante e tentando se equilibrar nada responde. A reação do jovem-alvo foi logo perguntar “o que você quer? ...eu nem te conheço..”. As mulheres, maioria naquele coletivo, começaram a se preocupar com a possibilidade de alguma confusão entre os dois e se afastam. Felizmente o mais jovem, perseguido sem motivo aparente, se manteve calmo e não ocorreu nenhuma violência física.
Desci e fiquei sem saber sobre o desfecho da cena, mas conclui que todos naquele ônibus sentiram-se mais molestados com a mudez daquele rapaz à beira da inconsciência, do que a sua embriaguez logo no início da tarde em um dia útil.
Isto me veio à lembrança depois de sentir grande frustração ao tentar, sem sucesso, escrever algo sobre o Dom de Línguas. Fiquei decepcionado comigo mesmo pois pensava se tratar de algo fácil, muito simples. Não. Não é fácil mesmo tentar intelectualmente resumir algo tão misterioso e amplo. Cada vez que me sentava à frente do computador e me levantava angustiado, sentia aquele bêbado silencioso me olhando, como se perguntasse sem emitir palavras:
- E agora seu sabichão tão experiente, não sabe o que escrever sobre esse dom???
Muitos diriam sem hesitar: “Vade retro satanás!”.
Eu não. Calei-me interiormente e fui dar uma longa caminhada orando em línguas...
Volto para casa e no escritório e, sem pensar, vou direto a uma preciosidade literária da RCC, um velho e raro livro que me pede uma nova encadernação. Publicado em 1975, pela pioneira Editora Loyola, esse clássico se intitula “É Jesus que cura”, do autor Pe. Francis MacNutt.
Na página 16 dessa incrível obra, após fazer sua introdução à edição brasileira, o Pe. Haroldo J. Rahm coloca uma nota:
“No capítulo 14, nº 6, 3º parágrafo, o Pe. MacNutt menciona a oração em línguas. No Brasil e em outros países, no meio católico, esse assunto tem encontrado injustificada incompreensão. No caso do presente livro, pode prejudicar a aceitação de verdades dogmáticas perfeitamente admissíveis. Para melhor entendimento da matéria, o leitor pode consultar os seguintes livros:” (cita o emblemático Sereis Batizados no Espírito, a Bíblia de Jerusalém e dois Dicionários bíblicos).
Outro texto publicado em 1988 veio a afirmar:
“Muitos dos carismas não apresentam problema algum às pessoas não envolvidas na Renovação Carismática Católica. Entretanto o carisma de línguas representa um problema. (...) Assim este dom autêntico humilde e humilhante, não pertence ao essencial da mensagem evangélica” e ainda,
“O Dom das Línguas não é o objetivo da Renovação – A Renovação Carismática não tem o propósito de levar todos os cristãos a orar em línguas. Deseja contudo, chamar a atenção para a plenitude dos Dons do Espírito Santo – um dos quais é o Dom de Línguas – (...)”
(Orientações Teológicas e Pastorais da Renovação Carismática Católica, de diversos notáveis teólogos e sacerdotes coordenados pelo Cardeal Suenens, Edições Loyola, pp. 62 e 64).
Creio que as coisas não mudaram. E não podemos confundir “aceitação” com “compreensão” de parte dos não participantes da RCC. Espero estar equivocado e mesmo assim creio na utilidade de nos reciclarmos, pois o Espírito é incrivelmente dinâmico, está sempre em movimento.
Aos participantes da RCC, portanto, nada custará aprofundarem nesse dom autêntico.
Por tudo isto a grande exortação que o Espírito colocava em meu coração era precisamente “há muito ainda a ensinar e aprender sobre esse inefável e incompreendido dom”.
As dificuldades que encontramos, aqui no Brasil e possivelmente em outros países, talvez residam no fato de não termos dado o devido e necessário tratamento a esse dom elementar mas fundamental aos nossos ministérios. Tememos passar pelas mesmas decepções do início quando, escarnecendo de nós carismáticos, nossos irmãos na fé repetiam o texto de Atos 2, 13 “Estão todos embriagados de vinho doce” ou algo mais contundente.
Trinta anos depois dessa nota do livro citado, muitas verdades dogmáticas têm sido prejudicadas por falta de aceitação desse dom carismático e não somente no ministério de Cura e Libertação.
Não vou tentar em poucas linhas expor tudo o que sabemos na teologia, na doutrina católica, sobre esse dom, pois não caberia em poucas laudas. Prefiro desafiar os leitores a procurar nele se embriagarem novamente e de novo.
Depois vou apontar a frase paulina a Timóteo “A ninguém imponhas as mãos inconsideradamente” (1 Tm 5,22).
Não peçam precipitadamente para os neófitos o dom de Línguas sem que eles estejam preparados para receber essa força do Alto, ou depois ficarão cambaleando, em silêncio, olhando, sem poder entender, de forma mínima, tão excelso dom.
É correto dizer que o Espírito Santo capacita os escolhidos, mas não dispensa os capacitados. Não dispensa, mas incentiva e assiste no estudo da doutrina, interpretação bíblica, teologia e áreas afins. Sim. A graça supõe a nossa inteligência, nossa mente consciente.
Entendo que, em termos humanos, hoje, o crescente consumo de álcool se deve à veiculação contínua de lascivos comerciais de cerveja e mesmo de cachaça (com a irônica advertência “Beba moderadamente”). Óbvio que por trás disto age o inimigo de Deus.
Podemos, no entanto, deste mal, tirar um bem. No bom sentido espiritual é preciso criar em nossas assembléias, nos grupos, de Oração, “comerciais” veiculando o desejo de “se embriagar” do vinho novo do Espírito; não para torná-los “dependentes”, evidente, mas para evitar a embriaguez sentimental, emocional e passageira.
Não podemos mais tratar o Dom de Línguas de maneira trivial, pelo fato de o “dominarmos”. Ninguém domina essa força de Deus!
Em Corinto, muitos convertidos, certamente pensavam dominar os carismas. Isto não evitou ciúmes, discórdias e contendas internas na comunidade e até levada aos tribunais pagãos (cf. 1 Cor 1,11-12;3,3-7.18; 6,1-3). Olhavam para si mesmos, para Apolo e Paulo e se desviaram (1 Cor 3,1-8).
(E, por Deus, não me refiro a isto porque ocorra na RCC, mas para alertar sobre os riscos da tentação do orgulho e da presunção que nos desviam da santidade).
Os líderes e servos mais experientes, simples agentes e administradores dos mistérios de Deus (1 Cor 4,1-2), sabem que o carisma das Línguas está explicitamente citado em nosso Catecismo, item 2003, ao lado dos Milagres, e se “ordenam à graça santificante” e se acham “à serviço da caridade, que edifica a Igreja” - textualmente as palavras do Catecismo. Devemos nos questionar, hoje, se isso tem sido levado ao conhecimento da assembléia como forma de ensino intensivo.
Daí surgem algumas interrogações de ordem prática:
- Quantos irmãos e irmãs do núcleo no seu grupo de Oração (vou me limitar a eles) podem imediatamente responder a um leigo ou aos sacerdotes esta, e outras referências ao dom de Línguas?
- No seu Grupo de Oração, ou nos Seminários de Vida no Espírito (SVES), tem sido programado o ensino extensivo e continuado sobre Línguas e Interpretação das Línguas?
- Os membros do seu núcleo, da sua Comunidade, distinguem claramente e aplicam, o que é Falar, orar e profetizar, em Línguas e sua Interpretação?
- Os líderes e servos têm noção dos carismas como algo essencialmente ministerial e pertencente à vida cotidiana da Igreja?
Finalizo, pedindo perdão por não conseguir colocar em letras, um grande texto sobre esse maravilhoso Carisma das Línguas. Foi uma experiência válida. Descobri, sinceramente, que pouco sei e tenho muito a aprender. Limitar-me-ei, pois, a me comunicar em minha “bebedeira” matinal e diária. Glória a Deus!
“Aspirai aos dons superiores. E agora, vou indicar-vos o caminho mais excelente de todos” (1 Cor 12,31).
Lício Nepomuceno
Data de publicação: 19/01/2006
Autor de “O desafio do Espírito” e “O Espírito Santo: Chave-Bíblica”, Editora Santuário, coleção Paulo Apóstolo e RCC Novo Milênio.
Endereço eletrônico do autor – licios@gma
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