Jornalista Reinaldo Azevedo, Revista Veja
Não! Eu não vou desistir de apontar as ações e avaliações que considero absurdas e atentatórias ao estado de direito. Até porque estamos diante de uma manifestação apenas; não é a primeira nem será a última. Uma coisa é ser favorável, como sou, à união de gays e até mesmo à adoção de crianças; outra, muito diferente, é defender a maneira heterodoxa como esse “direito” passou a ser reconhecido no Brasil: contra o que vai explicitado na Constituição, por decisão do Supremo, que, então, usurpou o papel do Congresso e se fez de legislador. A pergunta óbvia, que ninguém responde, é esta: será apenas nesse caso, que diz respeito aos gays, ou a prática se estenderá a qualquer assunto?
Boa parte decidiu não pensar, mas torcer. Haveria o risco de o pensamento ser confundido com atraso! Nestes termos estão sendo colocadas as coisas: quem apóia a decisão do Supremo é “progressista” e “laico”; quem não apóia e “atrasado” e “religioso”. É a estupidificação a que a militância politicamente correta conduz o debate. Cria-se uma falsa clivagem para driblar a questão essencial. Pode-se ser, como é o caso deste escriba, favorável ao mérito da decisão, mas absoluta e resolutamente contrário à forma escolhida. Ela esculhamba a democracia e transforma o Supremo numa espécie de Congresso Paralelo.
Hoje, Folha e Estadão publicaram editoriais a respeito. São dois exercícios nada meritórios de falácias lógicas. Seguem trechos do da Folha, em vermelho. Comento em azul:
O fato de a Carta omitir a união homossexual não impede seu reconhecimento, entendeu o STF. Se impedisse, haveria contradição com um objetivo fundamental da lei maior, consagrado logo no artigo 3º: “Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Já respondi ontem a essa questão. Levados a termo todos os princípios abstratos da Carta, não haveria uma só restrição ordenadora que parasse de pé. Mas isso ensejaria um debate longuíssimo. Constituições são emendadas e leis são reformadas justamente quando se considera que elas já não atendem às demandas da sociedade e dos indivíduos. A Folha faz uma coisa curiosa: nega a óbvia desarmonia Constitucional para poder justificar a decisão atabalhoada do Supremo. Atenção, redator! Atenção, Folha! Não é que a Constituição “omita” os homossexuais quando define união estável! Nada disso! Ela ESPECIFICA qual é união protegida pelo estado: entre homem e mulher. O texto pode não ser bom, mas é aquele. Tem de ser mudado? Que seja! Pelo Congresso.
Diferentemente de outros países de maioria católica (como Espanha, Portugal ou Argentina), cujos Parlamentos já haviam superado a restrição de direitos a homossexuais, o sistema político brasileiro -e não apenas o Legislativo- é ainda muito permeável a argumentos religiosos.
Coitados dos católicos! Lá estão eles apanhando da Folha, só para não variar! Pra começo de conversa, os evangélicos são até mais ativos nas restrições ao casamento gay. Melhor seria, então, falar em “cristãos”. Mas note, leitor: o jornal reconhece que, nos países citados, quem tomou a decisão foram os respectivos Parlamentos.
Nada indica que o Congresso estivesse disposto a contrariar essa poderosa corrente de opinião e aprovar alguma legislação com avanços significativos sobre o tema. A decisão do STF é histórica, portanto e mais uma vez, por reconhecer e reafirmar a laicidade do Estado brasileiro.
Nesse trecho, a Folha atinge o estado da arte porque esse é o argumento que justificou todas as ditaduras no Brasil e no mundo. Aliás, ele esteve na raiz do fechamento do Congresso nos tempos idos do famoso “Pacote de Abril” (pesquisem!). Como o Congresso, segundo a Folha, não queria “contrariar” a “poderosa corrente de opinião”, então o STF foi lá e contariou por ele. Achando que já tinha argumentado com eficiência e suficiência, o redator não tem dúvida: saca a conjunção “portanto” e conclui que a decisão é “histórica”. Só que há uma probleminha aí: quem tem mandato para mudar a Constituição é o Congresso, não o Supremo.
O Supremo, dessa forma, adiantou-se na defesa de direitos individuais que parcelas crescentes da opinião pública almejavam ver reconhecidos, diante da omissão do Congresso. Uma democracia, para ser completa, precisa ter mecanismos como esse para impedir que grupos sociais, mesmo que majoritários, impeçam a garantia de direitos fundamentais de minorias.
Uma democracia, para ser completa, respeita a independência entre os Poderes. Se não respeita, então é manca e corre o risco de ser outra coisa. O que a Folha fez com esse editorial foi declarar a obsolescência do Congresso, QUE REPRESENTA O CONJUNTO DOS BRASILEIROS. O jornal prefere os 10 do STF como representantes de “parcelas crescentes da opinião públicas”. Entendi: as parcelas crescentes podem mais do que o todo.
O Estadão, notável por editoriais sempre muito bem-pensados, escorregou miseravelmente desta vez. Leiam:
O contraste disso com a exemplar votação do Supremo – cujos membros, ao que se saiba, têm todos religião – equivale à proverbial passagem da noite para o dia. Ademais, a Corte tomou a si, quando provocada, uma incumbência que, pela ordem natural das coisas, cabia ao Congresso Nacional.
Os políticos se acovardaram diante da demanda de uma parcela da população. Uns, por serem contrários a ela. Outros, indiferentes ou mesmo favoráveis, mas não engajados, para não comprar briga com aqueles, estando a grande maioria de ambos os lados no mesmo confortável barco governista. A omissão do Congresso mostra ainda uma vez a sua distância em relação às questões da vida real dos brasileiros e seu desinteresse em criar direitos – salvo em benefício próprio ou dos seus patronos.
São os mesmos, fracos e insustentáveis argumentos da Folha. Também ali se nota a censura à religião, como se essa fosse a questão. Também o Estadão investe contra o Congresso, tão cheio de vícios — e quem há de negar? — para justificar que o Supremo aja em seu lugar, usurpando uma de suas prerrogativas. Até parece que um Congresso que se cala diante dessa violência institucional poderá ser melhor um dia… Tende a piorar!
Nos dois editoriais, estão dadas as bases argumentativas para a defesa de ditaduras virtuosas. Alguns poderiam protestar: “Mas a causa que eles defendem é boa; ditaduras defendem causas ruins”. Errado! A questão é de método. A democracia também é um mecanismo de tomada de decisões, o pior deles, com exceção de todos os outros que têm sido tentados de tempos em tempos, como já disse Churchill. Golpear com “bons valores” os adversários, fraudando as regras democráticas, nada tem de meritório. Segundo Thomas Paine, devemos preservar até nossos inimigos da opressão se queremos garantir a própria liberdade, ou o expediente discricionário a que eventualmente recorrermos um dia se voltará contra nós.
Chegamos ao ponto, como se nota acima, em que editoriais de dois dos mais importantes jornais do país aplaudem o Supremo justamente porque ele atuou como se Legislativo fosse. Como os dois veículos concordam com o mérito da decisão, então a violação da prerrogativa de um Poder e a extrapolação da do outro lhes parecem obra do mais puro iluminismo.
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