Fonte: Voto Católico
Quando os juízes se tornam senhores absolutos por causa de nossas omissões
Assistimos a um fato gravíssimo. Os ministros do Supremo Tribunal Federal, em decisão unânime, colocaram-se acima da Constituição reconhecendo a união estável para pessoas do mesmo sexo e equiparando-a à família.
Foi o desfecho dos processos que solicitaram que as uniões homossexuais fossem reconhecidas por lei; foram promovidos pelo Governo Federal através de Procuradoria Geral da República e pelo Governo do Estado de Rio de Janeiro.
Inicialmente, estava em questão se era ou não constitucional considerar como união estável as uniões homossexuais, já que a Constituição Federal e o Código Civil são claríssimos ao indicar que estas são constituídas por homem e mulher.
Lemos na Carta Magna, no Artigo 226:
§ 3º – Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a uniãoestável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento,
§ 4º – Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
E no Código Civil:
Art. 1.514. O casamento [civil] se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados, e
Art. 1.517. O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil, e ainda
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
É necessária alguma interpretação? Diante de textos tão claros, os ministros decidiram que os constituintes não queriam “reduzir” a união estável e a família só a relacionamentos de um homem com uma mulher. Segundo a opinião do relator Carlos Ayres Britto, o artigo constitucional em questão é aberto e não restritivo.
Os ministros recorreram a subterfúgios, ampararam-se na ideologia relativista e num uso alternativo do direito e utilizaram uma linguagem manipuladora, eufemística e oblíqua para tomar uma decisão contra o que está explicitado na Constituição. Fizeram uma interpretação claramente forçada de um texto constitucional claríssimo, do qual derivou a correspondente regulamentação do Código Civil.
Escutando-os, às vezes tínhamos a impressão de que alguns deles se sentiam desbravadores de um novo mundo. Tristemente, seus pareceres estão recheados de frases de impacto e considerações ideológicas, lugares comuns e apelos sentimentais. Em vez de sólidos argumentos racionais, nossos juízes colocaram-se entusiasmados contra evidências de ordem natural.
Confirma a nossa opinião um dos “argumentos” do ministro Carlos Ayres Britto: “o órgão sexual é um plus, um bônus, um regalo da natureza; não é um ônus, um peso, em estorvo, menos ainda uma reprimenda dos deuses”.
Por causa da arbitrária “exegese” dos nossos magistrados, toda dupla homossexual que assim o deseje poderá solicitar os direitos garantidos na lei para as uniões estáveis e para as famílias. E o ministro Cézar Peluso advertiu, ou melhor, quase urgiu ao Congresso para legislar e regulamentar sem demora o assunto em questão.
Qualquer oposição às uniões civis homossexuais por parte de um legislador no Congresso Nacional será automaticamente desqualificada como preconceituosa e anticonstitucional.
A máxima Corte do país decidiu ir além da Constituição e ver nela aquilo que queria aprovar, seja por convicção própria dos nossos juízes ou pela fortíssima pressão da opinião pública e dos grupos organizados e militantes de homossexuais.
E aqui paramos para esclarecer: nada temos contra pessoas que apresentam tendência homossexual, pois temos alguns conhecidos, amigos e até familiares com ela. Todos eles têm nosso respeito, compaixão, solidariedade e amor, no mais profundo sentido dessas palavras. Reprovamos todo tipo de violência e discriminação injusta contra elas e seremos os primeiros a defender sua dignidade nestes casos.
Mas, ao mesmo tempo, não podemos deixar de ver objetivamente que os atos homossexuais são intrinsecamente desordenados, contrários à ordem natural das coisas e incapazes de oferecer complementaridade afetiva e sexual.
Não podemos, em consciência, aceitar que a união homossexual seja algo que objetivamente não é. E vemos as profundas consequências desagregadoras para a sociedade que a decisão dos magistrados acarreará.
Qualquer pessoa despida de uma visão ideologizada pode olhar a realidade e afirmar que nela o ser humano existe como homem e como mulher, que entre eles nasce o belo desejo de se unirem e de se doarem mutuamente num consórcio estável de vida; que deles surgem filhos com os quais se estabelece um forte vínculo espiritual e consanguíneo; e que essa comunidade primária é base da sociedade precisamente porque sua configuração natural possibilita que a sociedade exista.
Não são apenas os princípios religiosos que nos colocam contra as uniões homossexuais e em defesa do matrimonio e da família, mas inicialmente a própria reta razão ao observar as características singulares de cada sexo e ao ver que de modo natural existe uma atração complementária e recíproca entre o masculino e feminino.
Como cidadãos, sentimo-nos desrespeitados e manifestamos total repúdio ao comportamento dos ministros do Supremo Tribunal Federal. A ordem natural, o bem comum e o próprio sentido comum do povo, que não aceita como natural esse tipo de união; são rejeitados como posturas pouco esclarecidas, quando em seu lugar são entronizados os lugares comuns e posições ideológicas, tidas como luzes reservadas a uma “elite” ilustrada que se arroga a missão de transformar o país contra a própria realidade das coisas.
Os ministros do Supremo Tribunal Federal se comportando como senhores absolutos — cegos pelo poder que hoje exercem no país, fundadores de uma nova ordem baseada mais na má política e na ideologia que no senso da realidade e da ética objetiva, que o relativismo, insuflado pelo orgulho, quase já não permite ver — acabam de abrir as portas da ordem jurídica para possibilidades gravíssimas.
Talvez seja possível que homossexuais que vivam sob o amparo da figura de “união estável” possam depois pedir o reconhecimento do “casamento civil”, pois ao terem todas as prerrogativas de uma “união estável” a Constituição pede que a estas a lei “facilite sua conversão em casamento”.
De fato, o ministro Celso de Mello disse durante o julgamento que “o julgamento de hoje representa um marco histórico na caminhada da comunidade homossexual; eu diria: um ponto de partida para outras conquistas”.
Ademais, se é só o afeto a razão que fundamenta a união estável, então amanhã qualquer um poderá convocar esse precedente jurídico para tentar o reconhecimento como uniões estáveis de relações marcadas pelo incesto, pela pedofilia ou pela poligamia.
Podemos citar como referência dessa possibilidade as palavras de Maria Berenice Dias, notória promotora dos direitos LGBT: “a homossexualidade, a transsexualidade, a bissexualidade, bem como a convivência homossexual são aspectos da expressão da sexualidade que devem ser considerados em seus amplos desdobramentos”.
Consideram os ministros as consequências sociais de sua decisão?
Triste espetáculo deles que, desenganados de qualquer bem objetivo e de qualquer justiça que mereça esse nome, não fazem mais que enxovalhar a ordem constitucional e trabalhar contra o bem comum — o qual, de resto, já não acreditam que exista objetivamente.
Assim, diante dos nossos olhos, e por causa de nossa omissão, a caixa de pandora foi finalmente aberta. Desgraçadamente, são poucos os que sabem quais serão as terríveis consequências dessa subversiva decisão. Anteriores diques rotos que vulneraram a instituição do matrimônio e da família possibilitaram também esse momento. Poderíamos pensar que nada mais pode ser impedido e que o pior já aconteceu. Mas equivocam-se os que pensam assim. Em dias vindouros, seremos comunicados de decisões judiciais que obrigarão — em nome “do direito sexual da criança e adolescente” — os nossos filhos a frequentar obrigatoriamente aulas de “educação sexual”. Nosso espelho para ver nosso futuro é a Espanha de José Luis Rodríguez Zapatero.
“Enquanto os nossos adversários nos dão uma aula de organização e nos fazem entender que a ação organizada é uma necessidade imperiosa, nós seguimos presos à nossa rotina e ao nosso isolamento”. Essas palavras de um insigne mártir do século XX parecem ter sido escritas para os católicos brasileiros.
No final do ano passado, os nossos irmãos argentinos tiveram de enfrentar a aprovação — realizada pelo Parlamento — do mal chamado “casamento” homossexual, de modo que agora os juízes, ao menos em princípio, são obrigados a efetivar essas uniões. Porém vimos milhares de pessoas saindo às ruas para manifestarem seu repúdio à falta de realismo do Parlamento, visto que a maioria da população daquele país, como também aqui, é contrária ao que foi votado.
No Brasil, onde estão as mobilizações? Nós nos perguntamos: o que temos feito os católicos brasileiros nas últimas décadas?
Onde estão os nossos pastores para fazer frente a tais agressões? Ainda que tenhamos belíssimos exemplos de bispos que agem e defendem as suas ovelhas dos ataques dos lobos, em geral o episcopado brasileiro, um dos mais numerosos do mundo, parece paralisado e pouco preocupado diante de ataques tão arteiros.
E o laicato católico? Onde ele esteve nos últimos trinta anos e onde está hoje? O maior país católico do mundo tem um laicato que parece incapaz de se organizar e se articular para exercer eficazmente sua missão de ordenar as realidades temporais conforme o Evangelho, ou quando menos, num primeiro passo, conforme a ordem natural.
“Que maioria católica é essa, tão insensível, quando leis, governos, literatura, escolas, imprensa, indústria, comércio e todas as demais funções da vida nacional se revelam contrárias ou alheias aos princípios e práticas do catolicismo? É evidente, pois, que, apesar de sermos a maioria absoluta do Brasil, como nação, não temos e não vivemos vida católica. Quer dizer: somos uma maioria que não cumpre seus deveres sociais. Obliterados em nossa consciência os deveres religiosos e sociais, chegamos ao abuso máximo de formarmos uma grande força nacional, mas uma força que não atua e não influi, uma força inerte. Somos, pois, uma maioria ineficiente”, disse já em 1916 Dom Sebastião Leme, e continua a ser verdade em muitos aspectos.
E você e eu, o que fazemos? Onde estávamos para que a decisão que ontem tomou o Supremo Tribunal Federal viesse a ser a que agora lamentamos?
Não podemos ficar sentados à espera de um milagre ou de uma intervenção direta de Deus. Devemos colaborar com Ele e esperar que se faça a Sua vontade. Diante disso tudo, perguntamo-nos novamente: onde está o laicato brasileiro? A atual situação é produto das nossas omissões e das dos nossos pais.
Mais ainda, temos a esperança e o dever de dar testemunho do Evangelho da Vida. Ontem, enquanto a votação do Supremo se desenvolvia, nossos bispos nos deram a alegria de escutá-los dizer que a Igreja seguirá defendendo os direitos da família e a nossa fé, pois isso também é liberdade, e que no Brasil devemos dar o exemplo para fortalecer a convicção cristã das pessoas, para que elas possam disser: “ainda que a lei permita isso ou aquilo, a minha convicção está firme”.
Seguindo nossos Bispos, para nós, as disposições do Supremo Tribunal não têm efeito. Resistiremos e atuaremos. A sociedade que se configurará como resultado das leis iníquas precisará de homens e mulheres generosos que contagiem com o testemunho da sua vida a beleza e a alegria de “viver como Deus manda”, e que com sua intensa ação reconstruam o que for derruído.
T. S. Eliot escreveu estes versos que hoje são nossos:
“de tudo o que foi feito no passado, comeis o fruto / bem seja podre ou maduro / e a Igreja deve estar edificando sempre / e sempre é demolida, e sempre está sendo restaurada / por cada maldade do passado sofremos a consequência / e de tudo quanto se fez de bom, temos herança… / e tudo o que é mau podeis repará-lo / se caminhais juntos em humilde arrependimento / expiando os pecados dos vossos pais / e tudo o que foi bom, deveis lutar por conservá-lo / com os corações tão devotos como os dos vossos pais / que lutaram para ganhá-lo… / pois nada é impossível, nada / para homens de fé e convicção”.
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