(…)
Meu pai queria que eu frequentasse a Escola da rua Ulm. Lá fui aos vinte anos, mas enganei-me de porta e, ao invés de entrar na Escola Normal superior, onde marcara um encontro com um antigo colega para jantarmos juntos, entrei na capela das religiosas da Adoração. O que passo a contar não é a história de uma descoberta intelectual, mas o relato de uma experiência física, experiência quase de laboratório.
Ao transpor o portão de ferro do convento, eu era ateu.
O ateísmo tem formas diversas. Há um ateísmo filosófico, que, incorporando Deus à natureza, se recusa a aceitar que Ele tenha uma personalidade própria e reduz tudo a dimensões da inteligência humana; nada é Deus, tudo é divino. Este ateísmo acaba por desembocar no panteísmo, que assume a forma de uma ideologia qualquer.
O ateísmo científico afasta a hipótese de Deus por considerá-la pouco conveniente para a pesquisa, e dedica-se a explicar o mundo unicamente pelas propriedades da matéria, evitando perguntar-se de onde ela vem.
Mais radical, o ateísmo marxista não somente nega a existência de Deus, mas até o mandaria passear se Ele existisse: a sua presença importuna bloquearia o livre jogo da vontade humana.
Além destes, existe ainda um ateísmo muito difundido e que eu conheço bem, o ateísmo imbecil; era o meu. O ateu imbecil não se questiona. Acha natural estarmos colocados sobre uma bola de fogo recoberta por uma tênue camada de lama seca, que gira sobre si mesma numa velocidade supersônica e descreve círculos em torno de uma espécie de bomba de hidrogênio, a qual por sua vez é arrastada pelo movimento de milhões de outras luminárias desse tipo, cuja origem é enigmática e cujo destino é desconhecido.
Eu ainda era um ateu desse tipo ao transpor a porta da capela, e lá dentro continuava a sê-lo. As pessoas que lá se encontravam, vistas a contraluz, apareciam-me como meras sombras entre as quais eu não conseguia distinguir meu amigo, e uma espécie de sol brilhava ao fundo: eu ignorava que se tratasse do Santíssimo Sacramento.
Não sofria nem de desapontamentos amorosos, nem de inquietações de espírito, nem de curiosidade. A religião não passava de uma velha quimera; os cristãos, de uma espécie atrasada no caminho da evolução. A História tinha-se pronunciado a favor de nós, os da esquerda, e o problema de Deus resolvera-se havia dois ou três séculos com a resposta negativa. No ambiente em que vivíamos, a religião parecia tão superada que já não éramos sequer anticlericais, a não ser em época de eleições.
Foi então que se deu o inesperado. Depois desse dia, quiseram a todo custo mostrar-me que a fé me havia trabalhado à socapa, que eu estava preparado para ela mesmo sem o querer, que a minha conversão fora apenas uma tomada de consciência repentina de um estado de espírito que desde havia muito tempo me predispunha para crer.
Erro crasso. Se a alguma coisa estava disposto, era a ironizar a religião; se o meu estado de espírito podia ser resumido numa só palavra, era esta: indiferença.
Vejo-o ainda hoje, esse rapaz de vinte anos que eu era então. Não esqueci a estupefação que o assaltou quando diante dele se ergueu, de repente, do fundo dessa medíocre capela, um mundo, um outro mundo de um fulgor insustentável, de uma densidade louca, cuja luz revelava e ocultava ao mesmo tempo a presença de Deus, desse mesmo Deus que minutos antes o rapaz jurava nunca ter existido, a não ser na imaginação dos homens. Ao mesmo tempo, invadiu-o uma onda, uma vaga efervescente de doçura e alegria mescladas, com uma força capaz de romper o coração, e cuja lembrança esse rapaz jamais perdeu, mesmo nos piores momentos de uma vida sulcada mais de uma vez pela angústia e pela dor. Depois dessa experiência, nada lhe restava a fazer senão dar testemunho da doçura e da dilacerante pureza de Deus, que lhe havia mostrado por contraste o barro de que estava feito.
Vocês me perguntam quem sou. Agora posso responder-lhes: sou um composto bastante turvo de nada, de trevas e de pecado. Seria um forma insidiosa de orgulho atribuir a mim próprio mais trevas do que posso conter e mais pecados do que posso cometer; a minha parte de nada, porém, é indiscutível, e sei que ela é a minha própria riqueza, uma espécie de vazio inesgotável oferecido à infinita generosidade de Deus.
Essa luz, que não vi com os olhos do corpo, não era a que nos ilumina e bronzeia; era uma luz espiritual, isto é, uma luz esclarecedora e como que a incandescência da verdade. Ela inverteu definitivamente a ordem natural das coisas. Após tê-la entrevisto, quase ouso dizer que, para mim, só Deus existe, e que o resto não passa de mera hipótese.
Muitos me têm perguntado: “E o seu livre-arbítrio? Decididamente, fazem de você o que bem entendem. Seu pai é socialista, você é socialista. Você entra numa igreja, e eis que se torna cristão. Se tivesse entrado num pagode, ter-se-ia feito budista; se numa mesquita, teria saído muçulmamo”. Ao que me permito responder, por vezes, que me acontece sair de uma estação sem me ter transformado num trem.
Quanto ao meu livre-arbítrio, só dispus realmente dele depois da minha conversão, quando compreendi que Deus podia salvar-nos de todas as sujeições a que ficaríamos inexoravelmente acorrentados sem Ele.
Insisto. Foi uma experiência objetiva, quase física, e nada tenho de mais precioso a transmitir-lhes dos que isto: para além do mundo, através dele, há uma outra realidade, infinitamente mais concreta do que aquela a que geralmente damos crédito, e que é a realidade definitiva, diante da qual já não há mais perguntas.
(Extraído do livro “Deus em questões”, pág. 28-32, ed.
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Seu pai foi um dos fundadores do partido comunista francês.
Sua bibliografia:
(traduzidos em várias línguas)
- La maison des otages (1946)
- Histoire paradoxale de la IVe République (1954)
- Le sel de la terre (1956)
- Voyage au pays de Jésus (1958)
- Les greniers du Vatican (1960)
- Votre humble serviteur, Vincent de Paul (1960)
- Dieu existe, je l’ai rencontré (1969)
- La France en général (1975)
- Il y a un autre monde (1976)
- Les trente-six preuves de l’existence du diable (1978)
- L’art de croire (1979)
- N’ayez pas peur, dialogue avec Jean-Paul II (1982)
- La baleine et le Ricin (1982)
- L’évangile selon Ravenne (1984)
- Le chemin de croix, au Colisée avec Jean-Paul II (1986)
- N’oubliez pas l’amour, la Passion de Maximilien Kolbe (1987)
- Le crime contre l’humanité (1988)
- Portrait de Jean-Paul II (1988)
- Le cavalier du Quai Conti (1988)
- Dieu en questions (1990)
- Le monde de Jean-Paul II (1991)
- Les grands bergers (1992)
- Excusez-moi d’être français (1992)
- Défense du Pape (1993)
- L’évangile inachevé (1995)
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