01 maio 2011

Sem a verdade, as próprias virtudes enlouquecem.Entrevista com o ex-porta-voz do Papa João Paulo II.



Aldo Maria Valli, publicada na revista Europa
Antecipamos alguns trechos da entrevista com o ex-porta-voz do Papa João Paulo II , o leigo espanhol  Joaquim Navarro, que será publicada na edição de maio da revista Studi Cattolici.
***
Qual foi, na sua opinião, o principal ensinamento de João Paulo II a todos os fiéis? O que ele verdadeiramente ensinou aos católicos durante seu longo pontificado?
Ele ensinou aos cristãos que não se pode viver diante de Deus como se vive diante do nada. Ele ensinou que a religião não é apenas um código moral: uma fé que não traz consequências para a existência cotidiana se reduz a opinião. Ele mostrou a uma geração humana inteira a inevitabilidade do “tema” Deus. Ele convenceu a época pós-moderna que não se pode entender o ser humano se deixarmos Deus de lado. E que, sem Deus, o ser humano é apenas um animal engenhoso, ou melhor, um triste animal engenhoso.
O que ele disse, ao contrário, às pessoas pertencentes a outras religiões? E aos não crentes?
Que Deus não pode ser múltiplo. Que no Deus único e verdadeiro todos podemos nos encontrar, também por meio de caminhos diferentes. Ou melhor, que ou a humanidade se encontrar no fim no Deus misericordioso, ou estamos condenados a ser primeiro estranhos e cheios de suspeitas uns pelos outros e, depois, inimigos.
Como o pontificado de João Paulo II incidiu na vida da Igreja? Qual palavra você pensa que pode colocar ao lado dessa contribuição? Coragem? Fidelidade? Unidade? Santidade?
Verdade: essa me parece que poderia ser a palavra a ser aproximada da sua contribuição. Sem a verdade, que ele tantas vezes ensinou, as próprias virtudes enlouquecem: o misericordioso confunde a piedade pelo pietismo e fraqueza, troca a intransigência pela rigidez desumana; confunde a unidade pelo amontoado de pessoas, e assim por diante. Sem a verdade – verdade sobre Deus, verdade sobre o homem e verdade sobre as coisas –, as virtudes cristãs enlouquecem e tornam-se vetores setoriais em luta entre si. (…)
Por que ele quis viajar tanto? Qual era a exigência profunda na origem das suas viagens pelas ruas do mundo?
Na visita a uma paróquia romana, quase no início de seu pontificado, uma criança de 10 ou 12 anos fez a mesma pergunta: “E tu, por que viajas tanto?”. A resposta do Papa foi igualmente concisa: “Porque nem todo mundo está aqui”. Ele sentia que devia ir ao encontro de todos. “Uma vez – dizia –, as pessoas iam à igreja por causa do padre. Hoje é o padre que deve ir ao encontro das pessoas”. Lembro-me de uma das suas últimas viagens, ao Azerbaijão. O esforço era enorme para ele: não caminhava mais; falar era um grande esforço; parecia um espírito generoso em um corpo que já não respondia aos impulsos e às ordens. No entanto, essa viagem foi feita, para ir encontrar os católicos desse país que eram, no total, menos de 200! Mas, para ele, mesmo esse punhado de fiéis tinha o direito de estar com o Papa, de rezar e de se alegrar com ele.
Ele falava com você sobre a sua visão da Igreja? Ela lhe disse alguma vez o que pensava do presente e do futuro da Igreja Católica?
Ele não entrava no exercício inútil de imaginar o futuro. Ele trabalhava no presente para fazer o futuro, para moldar o amanhã. Mas deixava o amanhã para o projeto de Deus. Naturalmente, ele analisava o presente para identificar bem onde Deus queria que ele trabalhasse, mesmo se às vezes, em certas situações específicas, ele dissesse: “Nem sempre é fácil entender Deus”. Mas isso não o levava à inatividade, ao contrário. Porque ele sabia que o ápice da vida cristã não é entender, mas sim amar.
Na última fase da sua vida, ele lançou repetidos apelos pela paz. O que ele temia? E qual foi o seu ensinamento no plano das relações internacionais?
O tema era sempre o mesmo: a dignidade humana, o valor transcendente da pessoa humana. As suas considerações não eram geopolíticas, mas sim humanas. Não é próprio da natureza humana – segundo ele – resolver as diferenças com a violência, como acontece no reino animal. Todas as vezes que eu o vi com raiva sempre foi por circunstâncias em que a dignidade humana sofria por causa da violência física ou moral, ou quando se previam violências por causa de guerras anunciadas ou possíveis. Isso explica a sua atitude nas duas guerras do Iraque, ou dos Balcãs, ou do Líbano. Ele fez de tudo para evitá-las e, depois, para pará-las. Mas ainda assim ele se perguntava, e nos perguntava: “Que mais o Papa ainda pode fazer?”. Justamente porque a sua abordagem às questões internacionais partiam sempre da atenção à pessoa (…).
Você pôde entender que tipo de relacionamento ele tinha com Deus? Como rezava, e quanto?
Para ele, rezar não era só uma necessidade, mas também a coisa mais natural do mundo. Ele alimentava a sua oração com as necessidades dos outros. Eram milhares de cartas que chegavam de todo o mundo pedindo uma oração do Papa por um filho, um marido, um amigo. E ele queria manter na sua capela, no Vaticano, todas essas mensagens: uma por uma, “contava” a Deus todas essas necessidades humanas que não acabavam nunca. Mas, ao mesmo tempo, agradecia a Deus por todo o bem que ele sabia que havia nas pessoas e no mundo. Seu otimismo se alimentava nas palavras do Gênesis: “E Deus viu que tudo era bom”.
Como ele viveu o atentado de 1981? De que modo esse fato marcou a sua visão da vida e do mundo?
Foi uma percepção brutal e inesperada do mal. Mas, logo depois, quando, no hospital, ele se deu conta de que o ataque ocorreu no dia de Nossa Senhora de Fátima, ele também concordou com a percepção do bem. Eu acho que ele nunca foi particularmente curioso por conhecer a trama oculta por trás do atentado, mas sim por saber que sentido ele tinha, o que Deus queria dizer a ele e ao mundo. Certamente, não foi a primeira vez que o sofrimento foi o protagonista na sua existência, mas era a primeira vez que o sofrimento e, ao mesmo tempo, a dor física o visitavam. Como um anúncio do que a sua vida seria anos mais tarde.
Qual foi a sua real contribuição para a queda do sistema soviético?
Penso em duas formas, que são como duas faces da mesma realidade. Em primeiro lugar, ele não aceitava a ideia – então muito difundida nas chancelarias da Europa e daAmérica – de que a divisão de Yalta garantia a paz, mesmo na Guerra Fria. Para ele, a injustiça dessa repartição, que roubava a identidade cultural de centenas de milhões de pessoas, não era aceitável. E não apenas por razões geopolíticas, mas principalmente por razões antropológicas, humanas. (…) Em segundo lugar, desde quando ensinava ética filosófica na Universidade de Lublin, ele pensava que nós se podia resistir ao adversário utilizando seus próprios métodos violentos. (…) Com uma sabedoria extraordinária, ele soube, naqueles dez anos – de 1979 a 1989 – estimular a autoconsciência nacional e, ao mesmo tempo, acalmar os ânimos. Uma obra-prima que hoje todos lhe reconhecem.
Costuma-se dizer que João Paulo II conseguiu ter uma relação especial com os jovens. Mas por quê? O que havia na base dessa relação tão intensa?
Ninguém, nem a família, nem a cultura, nem a escola dizia aos jovens o que ele lhes dizia. Assim, pelo menos, diziam os próprios jovens. Talvez, a partir de Rousseau em diante, a modernidade tenha dedicado quase todos os seus esforços educativos para mimar os jovens. E isso é terrível, porque uma pessoa mimada é uma pessoa que não conhece os seus limites. Ele lhes dizia que eram muito superiores às hipóteses que a cultura moderna lhes oferecia. Ele sabia abrir-lhes horizontes antropológicos e religiosos que ninguém ousava propor aos jovens.

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